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A Imagem Bloqueia Sempre a Verdade?

  • Foto do escritor: Laís Comini
    Laís Comini
  • 23 de out.
  • 3 min de leitura
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A imagem aparece como uma declaração de presença num mundo que teme a falta: ela ocupa, ordena e carrega uma promessa de completude. Mas essa promessa pode ser lida como uma artimanha da superfícies. Quando a lembrança se reveste de imagem e é revivida no imagiinário, ela não restitui um passado puro, ela organiza uma vitrine, selecionando os objetos e disfarça a poeira. Essa lembrança encobridora oferece um conforto visual, por ser uma narraiva de continuidade, porém fecha as portas por onde a linguagem poderia atravessar. O que se apresenta como recuperação de um real é, na verdade, um tampão que impede que o inconsciente fale em sua própria topografia. Portanto, as palavras, as falhas, as repetições que oraganizam o sintoma permanecem do lado de fora dessa moldura.


Na clínica, aprender a desconfiar da imagem é aprender a escutar o que do relato se recusa a converter-se em cena. Não se trata de decifrar a pintura como se ela guardasse em si um grande segredo, antes é acompanhar a circulação dos significantes que o sujeito pronuncia, a insistência de uma palavra aqui outra acolá, as trocas de silêncio, as metonímias do discurso. A interpretação então age de modo a reaticular, reodernar os termos do dito, trazendo à tona as ligações que a lembrança imagética pretende ocultar. Essa reaticulação põe em circulação uma 'cena outra', que não reduz o sonho a um símbolo, pois realça a forma como ele foi enunciado mais do que como foi mostrado.


Politicamente falando, a imagem tem um papel voraz. Em tempos midiáticos, as imagens bem compostas funcionam muito bem como uma espécie de "verniz social", exibindo o que convém, consolidando identidades e anestesiando as complexidades. A circulação massiva de imagens cria um mercado de atenção que rechaça o tempo do pensar, fazendo com que o excesso de visibilidade passe a operar como forma de distração organizada: quanto mais se mostra, menos se pergunta. Assim, a imagem não apenas mascara o inconsciente do sujeito, como também contribui para a naturalização de ordens simbólicas, fazendo do visível um instrumento de legitimação.


Há, contudo, uma diferença crucial entre desprezar a imagem e interrogá-la. A crítica psicanalítica antes de se propor a "queimar as vitrines", se movimenta no sentido de transformar espelhos em pistas. Movendo o olhar com suspeita, que suspende a verdade imediata, se colocando como investigador: quem nomeiou essa imagem, que termos foram silenciados, que repetições acompanham sua circulação? Um gesto que desloca o estatuto da imagem: de sentença para sintoma, de prova para pista.


No plano ético, essa mudança implica uma responsabilidade coletiva. Se falamos que a imagem bloqueia sempre a verdade quando é tomada por evidência final, nós, enquanto comunidade política e também associando a prática clínica, precisamos cultivar modos de atenção que tolerem a incerteza, valorizando a articulação do dizer, resistindo ao conforto da coesão estética. A escuta que procura o inconsciente não é uma delicadez privada, mas sim um dispositivo de deliberação pública que torna possível o conflito, porque sem conflito não há política, apenas um penoso espetáculo. Recuperar o espaço do enunciado abre passagem para o que a imagem quer encobrir: as contradições, os silenciamentos, as repetições que estruturam os dizeres e os poderes.


A conclusão não é nada confortável porém fecunda: a imagem ao dar forma fecha vias, nos protege porém nos imobiliza. A tarefa analítica e política se movimenta, portanto, em desmontar essa proteção com a ferramenta da linguagem, reaticulando os significantes que o sujeito e a sociedade repetem e repetem e repetem e repetem sem perceber. Não se trata de anular o poder das imagens, mas de não ceder-lhes o monópolio da verdade absoluta e irrefutável. Quando a fala volta a circular e o enunciado é reatracado aos seus ecos e cortes, a imagem perde o estatuto de cofre inviolável e se integra ao trabalho crítico: a verdade deixa de ser um troféu a ser exibido e transforma-se num bordado lento, feito de repetições, rasgos e costuras verbais; é nessa tessitura que descobrimos não uma revelação imediata, mas a possibilidade de agir — de interrogar enquadres, desnaturalizar silêncios e politizar o visível — de modo que ver passe a implicar pensar e falar, e a imagem passe de encerramento para início de uma disputa democrática.


 
 
 

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