O que se entende por IDENTIDADE em Psicanálise?
- Laís Comini
- 2 de set.
- 4 min de leitura

Quando falamos de identidade em psicanálise, é preciso começar desfazendo um mal-entendido fundamental. Porque, no senso comum, identidade é aquilo que nos define, aquilo que nos dá consistência, aquilo que nos torna reconhecíveis — para os outros e para nós mesmos. É o nome, o gênero, a nacionalidade, a profissão, o CPF. De certa forma, é aquilo que nos localiza no mundo, que nos insere em uma narrativa, que nos dá um lugar no discurso social. Já, para a psicanálise, a identidade não se apresenta como algo dado, mas como uma construção que se forma na tensão entre o que o sujeito diz de si e o que escapa ao seu dizer. Ela emerge num certo entrelaçamento da história singular com os discursos que a atravessam, sempre marcada pela ausência de um centro fixo. O sujeito não é aquilo que é, mas aquilo que falta — e é nessa falta que a identidade se desenha, se desfaz e se refaz, dinamicamente. Não há essência a ser descoberta, apenas efeitos: efeitos da linguagem que nomeia, do desejo que desloca, do gozo que excede. A identidade, portanto, não é destino nem origem, mas o rastro deixado pelo percurso de um sujeito dividido, em constante negociação com o Outro.
Freud já nos apontava que o eu não nasce pronto — ele se forma pelas identificações, como uma colagem de imagens, traços e expectativas herdadas do Outro. Não há um centro estável, mas uma superfície composta por ideais que o sujeito toma como seus, acreditando que assim será amado, reconhecido, aceito. O eu é, em grande parte, uma construção imaginária: aquilo que gostaríamos de ser, aquilo que supomos que os outros desejam de nós. Por isso, o eu é sempre atravessado por uma ficção — necessária para viver, mas ainda assim uma ficção.
Lacan leva essa ideia ao limite: o sujeito não é o eu. O sujeito é o que falta ao eu, o que escapa à imagem, o que não se deixa capturar. Há um furo no centro da identidade, um vazio que não se preenche, porque é estrutural. Esse furo é o lugar do inconsciente — onde o sujeito se revela não por aquilo que diz, mas por aquilo que falha ao dizer ou falta-a-ser. Ele aparece no lapso, no sintoma, no ato que desmente a intenção. O sujeito é o que não se reconhece no espelho, o que insiste além da imagem, o que se divide entre o que sabe e o que não quer saber.
A identidade, na escuta psicanalítica, não é uma essência a ser revelada, mas uma tentativa constante de suturar a divisão que constitui o sujeito. Se apresenta como um esforço de dar forma ao informe, de produzir uma imagem de unidade onde há dispersão, fragmentação, falta. O estádio do espelho, como formulado por Lacan, é o paradigma dessa operação: o bebê, ainda imerso em uma experiência corporal desorganizada e dependente, encontra na imagem especular uma totalidade que não vive, mas que passa a acreditar ser. Essa imagem inaugura a identidade, mas uma identidade alienada — porque vem do Outro, porque depende do olhar, do desejo, da linguagem que o antecede.
Na clínica, essa alienação se revela nas queixas mais íntimas: “não sei quem sou”, “não me reconheço”, “parece que vivo a vida de alguém que não sou eu”. O sofrimento psíquico, muitas vezes, nasce da tentativa de sustentar uma identidade que não comporta o desejo, que não acolhe o gozo, que não dá lugar à singularidade. A análise, então, não se propõe a reforçar essa identidade, mas a desorganizá-la, abrindo espaço para o que não se encaixa, para o que insiste como resto, como sintoma, como furo. A identidade, nesse sentido, é sintomática: é a forma que o sujeito encontra para se localizar no mundo, mas também o modo como se aprisiona, se limita, se adoece.
Vivemos hoje em uma cultura que se agarra às identidades — de gênero, de raça, de classe, de território, de perfil digital — como se nelas estivesse a chave da verdade subjetiva. E a psicanálise, sem negar a importância política e histórica dessas construções, lembra que toda identidade é também ficção. Que toda identidade carrega em si a marca da divisão. Que não há identidade sem furo, sem resto e sem deslocamento. E que é justamente nesse ponto de falha que se abre a possibilidade de invenção.
A identidade, portanto, não é o que somos, mas o que tentamos ser. É o que performamos, o que nos é atribuído, o que escapa à nossa tentativa de captura. A psicanálise não busca restaurar uma identidade perdida, mas sustentar o sujeito em sua divisão. Ajudá-lo a fazer algo com o que nele não se encaixa, a inventar uma forma de existir que não seja mera repetição do Outro. Porque, no fundo, a identidade é menos uma resposta do que uma pergunta — uma pergunta que cada sujeito responde à sua maneira, com seus sintomas, seus atos, seus silêncios. E é nessa resposta singular que se encontra a ética da psicanálise.



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