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"Espantosa Grandeza, a do Amparo" (Bertolt Brecht)

  • Foto do escritor: Laís Comini
    Laís Comini
  • há 1 dia
  • 4 min de leitura
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A frase "espantosa grandeza, a do amparo" abre um espaço de reflexão que nos convida a deslocar o olhar do que se pensa como óbvio: o amparo, frequentemente reduzido a um gesto íntimo e discreto, revela-se como força estruturante da vida psíquica e social, e espanta justamente por sua dimensão muitas vezes invisibilizada. Quando consideramos, pela lente psicanalítica, que o sujeito nasce vulnerável e desamparado, a repetição de respostas suficientemente confiáveis, como uma presença que acolhe, um olhar que regula, uma fala que nomeia, configura o chão simbólico onde o eu aprende a existir sem se desfazer, e é nessa trama de respostas que se funda a capacidade de tolerar frustrações, de diferir gozos e de construir narrativas internas que sustentam o desejo. Assim, a grandeza do amparo não é uma qualidade etérea: é o efeito concreto de práticas que permitem à criança e ao adulto inscreverem a falta e transformarem a angústia em linguagem, o que coloca o cuidado no centro da constituição subjetiva e nos obriga a pensar o cuidado como infraestrutura da existência humana.


Ao olhar para a clínica, percebemos que a transferência funciona como via de retorno dessas demandas de amparo, e que o analista, ao oferecer uma escuta sustentada, atua como superfície onde antigas expectativas de reparo podem ser repetidas e, eventualmente, transformadas; esse processo não promete cura milagrosa, mas habilita movimentos de resignificação que alteram a economia interna do superego, deslocando imperativos punitivos para exigências éticas de responsabilidade por aquele laço que nos vincula ao outro. A força dessa transformação é discreta e lenta, mas sua eficácia é grande: pequenas experiências repetidas de reconhecimento e resposta modificam padrões de repetição compulsiva, permitem modos de vínculo menos frágeis e abrem espaço para que o sujeito possa habitar o próprio inconsciente sem ser tragado por ele. É aí que o espanto se torna compreensível — porque o que age como reparo é, muitas vezes, apenas um gesto que se repete, e o efeito cumulativo desse gesto tem a amplitude de uma arquitetura interna que torna possível a vida social.


Essa leitura clínica ecoa numa crítica social inevitável: numa cultura que exalta a autonomia como valor supremo e que organiza a vida pela lógica da produtividade, o trabalho de cuidar é frequentemente relegado ao privado, desvalorizado e precarizado, e essa desvalorização tem custos psíquicos e políticos enormes. Reduzir o amparo a um recurso individual é aceitar que a base que sustenta a subjetivação seja vulnerável a cortes orçamentários, jornadas extenuantes e invisibilidade simbólica, e é precisamente essa condição que produz a fragmentação dos laços, a intensificação da solidão e a patologização de sofrimentos que são, em larga medida, efeitos de uma ausência estrutural de cuidado. Quando a sociedade trata o cuidado como exceção ou benevolência, ela naturaliza o abandono e cria as condições para que o desamparo se torne norma, e esse movimento não é apenas uma falha ética, mas uma falência política, porque a manutenção do laço é condição para a coesão social e para a possibilidade de projetos coletivos.


Reconhecer a espantosa grandeza do amparo implica, portanto, uma virada que combina clínica, ética e política: clínica, porque entender o amparo como infraestrutura psíquica altera a maneira como pensamos intervenções e prevenções; ética, porque transforma o imperativo interno do sujeito e as demandas mútuas entre pessoas; política, porque reclama instituições que garantam tempo, reconhecimento e recursos para o cuidado. Fazer do amparo uma prática pública e garantida não significa reduzir o afeto a técnica, nem transformar o íntimo em burocracia, mas sim construir dispositivos que assegurem que a capacidade de permanecer com o outro na sua fragilidade não dependa apenas da exceção benevolente de alguns, e sim de direitos que sustentem a vida mínima necessária para que a subjetivação possa ocorrer. Essa é uma exigência que atravessa escolas, serviços de saúde, políticas de trabalho e imaginários culturais, pois é preciso redesenhar a organização social para que o gesto de cuidar não seja sempre um custo a cortar, mas investimento civilizatório.


No plano mesmo do cotidiano, a grandeza do amparo manifesta-se em atos pequenos e repetidos: a presença que volta à noite para conferir a respiração, a rotina que organiza a desordem das rotinas noturnas, a conversa que nomeia o medo, o olhar que valida uma dor sem apressar a solução. Esses gestos têm uma economia peculiar, parecem insignificantes isoladamente mas acumulam efeitos, e por isso merecem ser reconhecidos, celebrados e protegidos. A poesia dessa constatação mora na simplicidade do gesto que permanece; a política dela exige que o gesto se torne visível e sustentado por arranjos coletivos. Quando o amparo é assegurado, não apenas se contém a angústia imediata, mas se planta a condição para que projetos maiores de vida sejam possíveis, porque a segurança psíquica que dele decorre permite risco criativo, vínculos mais estáveis e capacidade de imaginar futuros comuns.


Dizer que o amparo é espantosamente grande é, por fim, reconhecer que a verdadeira grandeza humana não se mede apenas em conquistas externas, mas na capacidade de permanecer com o outro na vulnerabilidade, de transformar a dor em palavra e de organizar coletivamente condições que tornem esse permanecer possível; é entender que a liberdade mais profunda: aquela que permite o desenrolar de desejos e projetos, nasce no seio de laços protegidos, e que cuidar é, em última instância, a forma mais radical e concreta de preservar a condição humana.

 
 
 

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