O Papel da Criatividade nas Mudanças Psíquicas
- Laís Comini
- 16 de jul.
- 3 min de leitura

O papel da criatividade nas mudanças psíquicas é algo que, à primeira vista, parece pertencer ao campo da arte, da invenção, da estética. Mas, se olharmos com mais cuidado, veremos que a criatividade é uma função estrutural do sujeito. Não se trata apenas de pintar quadros, escrever poemas ou compor músicas — embora tudo isso também seja expressão de um trabalho psíquico. Criatividade, em psicanálise, é a capacidade de produzir novas formas de habitar o mundo, novas maneiras de lidar com o desejo, com a falta, com o sintoma. É a capacidade de inventar uma saída onde não havia caminh, e isso, na clínica, é absolutamente decisivo.
Porque o sofrimento psíquico, muitas vezes, é justamente a cristalização de uma forma de gozar, de uma forma de se relacionar com o Outro, com o corpo, com o tempo, que se tornou rígida, repetitiva, estéril. O sintoma é uma solução — mas uma solução que se repete, que se fecha sobre si mesma, que impede o sujeito de se deslocar. E é aí que entra a criatividade: como aquilo que permite uma torção, uma dobra, uma reconfiguração do campo simbólico. A mudança psíquica não é, portanto, uma correção, uma adaptação, uma normalização. Ela é uma invenção. Uma invenção singular, contingente, que só pode surgir a partir do próprio sujeito.
Mas essa invenção não é livre no sentido banal do termo. Ela não é arbitrária, voluntarista, espontaneísta. Ela é uma resposta ao real. E o real, como sabemos, é aquilo que não cede, que não se simboliza, que retorna sempre ao mesmo lugar. A criatividade, nesse sentido, é a capacidade de fazer algo com o impossível. De dar alguma forma ao informe, de produzir sentido onde há apenas repetição. E isso exige tempo, escuta, elaboração. Exige que o sujeito se confronte com sua própria divisão, com sua própria castração, com aquilo que nele escapa à imagem, à identidade, à narrativa.
Na clínica, vemos isso de maneira muito concreta: o sujeito chega tomado por uma narrativa sobre si mesmo, uma imagem de quem ele é, do que ele deve ser, do que os outros esperam dele. E essa narrativa, muitas vezes, é o que o adoece. Porque ela não dá conta do real do seu desejo, do real do seu gozo. A análise, então, não é um processo de reforço dessa narrativa — é um processo de desmontagem, de desconstrução e de abertura de espaço para que algo novo possa surgir. E esse algo novo não é dado pelo analista, não é prescrito, não é ensinado, mas inventado pelo sujeito e essa invenção é, no fundo, um ato criativo.
A criatividade, portanto, não é um luxo ou um dom, não é uma habilidade reservada aos artistas. Ela é uma função vital do sujeito, que permite que ele não fique prisioneiro de sua história, de seu trauma, de seu sintoma. É o que permite que ele se reinvente, que ele se reposicione, que ele se autorize. E isso não significa apagar o passado, mas se orienta como uma forma de reinscrevê-lo, dando-lhe outra forma, outro lugar, outro valor. A criatividade é, nesse sentido, uma forma de subversão. Subversão do supereu, do ideal do eu, da repetição mortífera. É o que permite que o sujeito diga: “isso que me aconteceu não me define — eu posso fazer algo com isso.”
E talvez seja por isso que a arte, a literatura, o humor, a ironia, tenham um lugar tão importante na psicanálise. Porque são formas de dizer o indizível, de tocar o real sem recalcá-lo, de criar uma distância entre o sujeito e seu sofrimento. São formas de elaboração, de simbolização, de deslocamento, e é nesse deslocamento que a mudança psíquica se torna possível. Não como uma cura no sentido médico, mas como uma transformação da posição do sujeito em relação ao seu desejo, ao seu gozo, ao seu sintoma.
A criatividade, então, é o que nos salva da repetição, se podemos assim dizer. É o que nos permite viver de forma singular, ética, implicada. Viver com o que nos falta, com o que nos atravessa, com o que nos escapa. Viver com o inconsciente — e não apesar dele. E isso, no fundo, é o que a psicanálise propõe: não uma adaptação ao mundo, mas uma invenção de mundo. Um mundo que possa acolher o sujeito em sua diferença, em sua opacidade, em sua verdade.
Comments