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O Que Faz CORPO em Psicanálise

  • Foto do escritor: Laís Comini
    Laís Comini
  • 6 de ago.
  • 3 min de leitura

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O que faz corpo em psicanálise? A pergunta nos impele a abandonar qualquer concepção espontânea que o reduza a um ente dado, visível e facilmente mensurável. No discurso analítico, o corpo não é uma instância puramente anatômica, nem um organismo fechado em suas funções biológicas. Ele emerge como superfície simbólica, como matriz de inscrição do desejo e como o locus singular onde o sujeito se desdobra e se divide. Tá, mas o que isso quer dizer?

Quer dizer que o corpo não é isso que nos é simplesmente fornecido, como uma capa ou uma ferramenta terrestre. Ele se faz, e essa produção se dá no entrelaçamento entre o simbólico, o imaginário e o real, se articulando sempre na relação com o Outro — seja no olhar que nos delimita, seja na palavra que nos constitui. Nesse sentido, o corpo psicanalítico é tecido de cortes e marcas, não de órgãos e sistemas.


Freud já vislumbrou essa configuração fragmentária quando descreveu o corpo pulsional e erógeno da criança. Para o bebê, não há integração orgânica plena: há zonas de excitação dispersas, vivências de prazer e desprazer que ainda não se unificaram. É o Outro primordial — geralmente a mãe que nomeia, embala e toca — quem, por meio da linguagem e do afeto, vai costurando essas zonas. Essa sutura produz uma unidade sempre imaginária e provisória, necessária para que o eu se localize, mas incapaz de conter a vastidão pulsional que o constitui.


Lacan leva adiante essa indagação ao postular que o corpo é efeito do significante. Não é apenas uma mediação da linguagem sobre algo que já existe: é a linguagem que opera como instância formadora, forjando o corpo em sua materialidade simbólica. O significante opera incisões, demarca contornos, institui funções, por isso, o corpo que vemos no espelho — ou aquele que a medicina descreve como soma — difere radicalmente do corpo na clínica analítica, que fala, escuta, sofre e goza.


Nesse contexto, o corpo se organiza em torno da falta, não da completude. Ele nasce daquilo que lhe falta, do que o atravessa e do que o excede. A ausência é seu motor estrutural. É justamente aí que o sintoma corporifica o impossível de ser dito: um corpo que não dorme, que se automutila ou que se expõe de maneira extremada vem a público para dar forma ao informe, para tornar visível o inaudível.

A dimensão do gozo revela a instância irreconciliável do real no corpo. O gozo não se submete à significação, ultrapassa a busca do prazer e perfura a malha simbólica. Ele permanece como resto, excesso, insistência que não se doma. Por intermédio dele, o inconsciente se inscreve em carne viva — e é no corpo que o sujeito enfrenta aquilo que resiste à palavra.


Na contemporaneidade, as redes sociais e a lógica do espetáculo compeliram o corpo a se tornar performance, mercadoria e vitrine identitária. A exposição incessante reforça normativas estéticas e morais, mas também abre fendas de resistência. O corpo passa a ser o território em que o sujeito experimenta cada vez mais modos de insurgência contra o padrão, tentando reafirmar sua singularidade. É aqui que uma escuta psicanalítica se revela singular: não por reduzir o corpo ao visível ou ao funcional, mas por acolhê-lo como enigma e como verdade que não se descreve por inteiro. O corpo, para a análise, não é transparência — é opacidade. Ele só se revela pela metade, fragmentado, descontínuo, marcado pela falta.


Assim, o que faz corpo em psicanálise? É o que nele se inscreve como corte e gozo, o que resiste à captura da imagem e da soma, o que intensifica a divisão interna sem jamais alcançar plenitude. O corpo é passagem: atravessa-nos, nos divide, nos ancora e, ao mesmo tempo, nos escapa. É nele que o sujeito se escreve e se desfaz, na precariedade de uma construção irrevogavelmente singular, pois somente nessa singularidade reside a sua verdade.

 
 
 

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