Sobre ERRAR (reflexão)
- Laís Comini
- 27 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 14 de out.

Vivemos sob a pressão de um superego neoliberal que exalta o triunfo imediato e, ao mesmo tempo, condena o erro como marca de incompetência. Essa exigência de eficiência constante nos transforma em vigilantes de nós mesmos, patrulhando cada gesto e estigmatizando o deslize como se fosse um atestado de fracasso. Perdemos, então, o contato com a falibilidade e, ao abrir mão da possibilidade de errar, nos reduzimos a um manual de práticas seguras, alheios às frestas onde o inusitado ganha voz. É nesses hiatos que o psiquismo rompe a rigidez do discurso dominante e reconvida desejos e traumas recalcados a se manifestar.
Quando passamos a enxergar a falha como potência criativa, rompemos com a tirania da performance que se espalha por todos os cantos da vida cotidiana. A meritocracia linear exige apenas acertos, silenciando tudo o que escapa à lógica do sucesso. Mas o erro não é simples retrocesso: ele inaugura uma zona de indeterminação em que o sintoma ganha consistência e o inconsciente, uma escuta. Nesse terreno instável, descortinam-se as motivações mais profundas, aquelas que não cabem em metas trimestrais, em indicadores de produtividade ou em qualquer planilha.
O lapso deixa de ser um incômodo para revelar-se como um sinal de vida pulsando sob a superfície. Quando alguém chama, por exemplo, o chefe de “pai” numa sala de reunião, não vemos apenas um tropeço linguístico, mas a urgência de um desejo que insiste em romper o padrão estabelecido. O ato falho, ao interromper o fluxo previsível da comunicação, põe em xeque o discurso hegemônico e aponta para uma verdade singela: somos movidos por forças que ultrapassam o cálculo racional.
É nesse sentido que, na clínica psicanalítica, se propõe a acolher a imperfeição como via de acesso ao sujeito. Em vez de apagar o erro como quem retoca uma mancha ou alinha a direção, o analista se demora em sua potência de revelar o sintoma. Assim, abre-se espaço para um novo modo de falar sobre si, construído justamente a partir da falta, e trabalhar com essa falta significa traçar percursos de invenção subjetiva que desafiam as amarras do superego neoliberal.
Ao legitimarmos o direito de errar, instauramos uma clínica de resistência ao discurso que nos quer eternamente otimizados, permitimos que o sujeito não seja apenas um gestor de resultados, mas alguém aberto ao acaso da própria vida. É nessa margem de liberdade que a psicanálise reconstrói o laço social, deslocando o valor do sucesso para a curiosidade diante do desconhecido.
Reivindicar a dignidade do erro equivale a subverter a norma que cristaliza o sujeito num papel estreito de executor de metas. Além de colocar em cheque a ilusão da perfeição, abrindo espaço para o ser desejante, errante e humano. O erro ou o equívoco, ao assumir o status de ato fundador, desafia o vazio que se esconde por trás das promessas de produtividade. É na suspensão desse vazio que se abrem frestas para a criação, para o encontro com o inédito e para a reinvenção de nossos próprios contornos existenciais.
Aceitar-se vulnerável, sujeito a tropeços e contratempos, é resgatar o direito de investir no acaso da vida. A falha, em sua generosidade, lembra-nos que a experiência humana jamais se subordina a metas rígidas ou cronogramas implacáveis. Desse encontro entre o incontrolável do inconsciente e a ousadia de insistir no próprio modo de ser, emerge o novo. Que façamos do erro um aliado — e não nossa condenação — para redescobrir a potência que escapa ao rígido regime da performance.



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