Uma Análise do Filme "Idiocracia"
- Laís Comini
- 8 de jul.
- 4 min de leitura

Queridos leitores, assistam o filme, antes ou depois de lerem esse texto. Vai valer a reflexão. 😉
Ao assistir Idiocracia, a primeira tentação é classificá-lo como uma sátira futurista, uma comédia distópica que exagera a estupidez coletiva para fins de entretenimento. Mas, se escutarmos o filme com os ouvidos da psicanálise, o que se revela é algo mais inquietante: não se trata apenas de uma crítica à burrice generalizada, mas de uma denúncia do esvaziamento simbólico da cultura, da erosão do laço social e da substituição do desejo pelo consumo. O que está em jogo ali não é apenas a queda do QI médio da população, mas a falência das estruturas simbólicas que sustentam a transmissão, a linguagem, a alteridade. O que o filme nos mostra, com um humor ácido e incômodo, é o triunfo do imaginário sobre o simbólico — e, com isso, a emergência de um real sem mediação.
A premissa é simples, quase banal: um homem medíocre, absolutamente comum, é congelado e acorda 500 anos no futuro, apenas para descobrir que se tornou o homem mais inteligente do planeta. Mas o que essa inversão revela é a lógica perversa do discurso capitalista em sua forma mais crua. A inteligência, no mundo de Idiocracia, não é mais um valor simbólico, mas um obstáculo à eficiência do gozo. O saber foi substituído pela opinião, a linguagem pela imagem, o desejo pelo impulso. O Outro — essa instância que regula, que limita, que estrutura — foi dissolvido. E o que resta é um sujeito colado à sua demanda, incapaz de simbolizar, de esperar, de escutar. Um sujeito que só sabe consumir, repetir, obedecer.
Nesse sentido, o filme é menos uma ficção científica e mais um retrato hiperbolizado do presente. Porque o que vemos ali — a medicalização da ignorância, a espetacularização da política, a infantilização da linguagem, a privatização da água, a substituição da agricultura por refrigerante — não é tão distante assim do que vivemos hoje. O que Idiocracia nos mostra é o que acontece quando o discurso do mestre é substituído pelo discurso do capital: a verdade deixa de ser uma questão ética e passa a ser uma questão de marketing. A linguagem deixa de ser um campo de conflito e passa a ser um instrumento de sedução. O sujeito deixa de ser dividido e passa a ser reduzido a um perfil de consumo.
E aqui entra a psicanálise. Porque, para nós, o sujeito não é um dado biológico, nem um produto cultural, mas um efeito de linguagem. Um sujeito que se constitui na falta, na castração, na relação com o desejo do Outro. E o que o filme nos mostra é um mundo onde essa falta foi apagada. Onde tudo é imediato, transparente, literal. Onde não há mais espaço para o inconsciente, para o equívoco, para o sintoma. Um mundo onde o gozo se tornou obrigatório, e onde o sofrimento é tratado como defeito técnico. Um mundo onde a linguagem não serve mais para dizer, mas apenas para ordenar, para vender, para entreter.
Na clínica, vemos os efeitos disso todos os dias. Sujeitos que chegam sem palavras para nomear o que sentem, que se angustiam diante da menor frustração, que buscam respostas prontas para perguntas que nem sabem formular. Sujeitos que foram educados para performar, mas não para desejar. Que sabem tudo sobre algoritmos, mas nada sobre si mesmos, que confundem liberdade com escolha, e escolha com consumo. E que, por isso mesmo, sofrem — mas não sabem por quê. Idiocracia, nesse sentido, é uma metáfora do sujeito contemporâneo: cercado de estímulos, mas vazio de sentido; hiperconectado, mas radicalmente só; livre para tudo, exceto para desejar.
O que o filme nos provoca a pensar, então, é: o que acontece com uma sociedade que perde sua capacidade de simbolizar? Que transforma a linguagem em ruído, o saber em meme, a política em reality show? O que acontece com o sujeito quando ele não encontra mais um Outro que o escute, que o limite, que o interprete? O que resta quando o laço social é substituído por uma rede de consumo, de imagens, de performances? A resposta do filme é cínica, mas precisa: resta a idiotia. Não no sentido clínico, mas no sentido ético. A idiotia como recusa da alteridade, como fechamento ao Outro, como gozo solitário e autossuficiente.
Mas talvez haja uma saída, e essa saída passa, paradoxalmente, pela escuta. Pela escuta do que não se encaixa, do que não se adapta, do que resiste. Pela escuta do sintoma, do equívoco, do mal-entendido. Pela escuta do desejo — esse desejo que não se deixa reduzir a algoritmo, que não se satisfaz com likes, que não se realiza no consumo. A psicanálise, nesse cenário, não é um luxo, nem um anacronismo — ela é uma forma de resistência. Uma forma de sustentar o sujeito em sua divisão, de recolocar a linguagem em seu lugar de furo, de reintroduzir o tempo, o silêncio, o intervalo. Uma forma de lembrar que, mesmo em meio à idiotia generalizada, ainda é possível desejar.
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